terça-feira, 4 de abril de 2017

Ross Gay  (1974 - )

Colher
             
                   Para Don Belton

Quem se sentará assim no chão da cozinha,
às duas da manhã, virando uma e outra vez

um pequeno e silencioso objecto nas suas mãos,
de olhos fechados, tacteando os enfeites

em gavinhas de hera gravados delicadamente na colher
que veio parar a minha casa da festa do lado há oito meses,

durante a qual
o aniversariante, tão inebriado em fumo

e bebida e bolo, fez como um bebé
e se deitou e adormeceu no chão com o dedo

na boca, até atravessar a cambalear na manhã seguinte 
o jardim para minha casa quando eu estava a fritar

biscoitos de batata-doce, e, como era típico seu, depois de testar um 
dos meus ladrilhos e de se acomodar

como se estivesse em sua casa,
me dizer que devia acrescentar mais fermento em pó

aos biscoitos dele e servir café
e aumentar o volume da Nina Simone e talvez massajar

os seus pés, o que eu fiz, misturando
o fermento, e agrada-me pensar,

apesar de ser pouco provável, que aqueles foram os melhores
biscoitos que o Don alguma vez comeu, pois tinham óleo de coco

e xarope comprado a um homem que usa um 
boné arco-íris que grita no mercado

e que dança para disfarçar a sua tristeza.
Talvez seja mesmo um desejo ridículo,

mas é que as batatas-doces vieram de uma colónia
um pouco à frente da minha porta das traseiras, sufocando

com as suas videiras a relva e tendo para olhos mal treinados
o seu papel no aspecto desleixado e selvagem do meu quintal:

as couves e acelgas tão exuberantes,
alguns caules incógnitos caídos na palhada,

os tomates-cereja que brilham como enfeites
de uma árvore de Natal bêbeda e as videiras de amora

carcomidas pela parreira meio idiota e enferrujada.
Estamos no Indiana, de onde eu não sou realmente, onde,

durante anos, não era permitida a entrada de negros,
e onde os graffiti nas áreas de serviço podem confirmar

a persistência de tais sentimentos racistas, e quando
revelei ao Don o meu medo numa noite de Setembro,

medo do que aquilo pudesse parecer...
o Don, na sua gentileza abundante e floral, notando a minha ansiedade

ainda antes de eu a manifestar, tendo andado por aí umas semanas antes
a ver antiguidades em Martinsville

e sendo abordado da forma mais rude por um ou dois camiões que passavam,
camiões provavelmente adornados de estrelas e riscas,

que sabiam o que o barulho das corridas de typhoons pode fazer a uma cabeça,
enrolando numa mão uma rasta e afagando-me as costas com a outra,

perguntou, sorrindo triste e sabiamente, niggerish?
antes de dizer está tudo bem, voltando depois a alguma ruminação

sobre o rapaz do jardim nos seus sonhos,
cujos calções curtos eram muito curtos, e a barriga lisa

e untada de tal forma que se podia ver o próprio reflexo nela.
o Don disse-me isto enquanto caminhávamos de braço dado

pelo nosso pequeno bairro,
perguntando-me se o podia fazer,

posso fazer isto?, perguntou, sabendo bem
o quão denso e cortante pode ser o medo ignorante

da maioria dos rapazes hétero  – oh, Don –
caminhando de braço dado, ombro com ombro,

a sua mão quase acariciando o meu antebraço, pousada ali,
pela pequena viela próxima do cemitério

ao pé de sua casa na Rua n.º 4, onde na vida real
cantávamos a “Missing You” da Diana Ross enquanto decorávamos

a sua cozinha, onde uma vez perguntei se me emprestava
o romance da Jamaica Kincaid autografado, ao que

o Don, sugando sobre os dentes, emitiu um som que indicou
que eu era impossivelmente estúpido como também um bocadinho amoroso,

e rua onde, naquele sonho do cemitério,
os carvalhos velhos e centenários se assemelhavam a gigantes encaminhando-se

contra um vento feroz e algumas lápides antigas,
a ponto de serem ilegíveis, se inclinavam para trás como que

acudindo ao sol. No sonho do Don, ele flutuava
no ar que, agradável a princípio,

se tornou assustador, disse-me ele, começando a chorar
apenas um bocadinho, enquanto o mundo abaixo dele

encolhia e encolhia, a sua casa
transformando-se num brinquedo, os membros gigantes das árvores como braços

de pessoas minúsculas, chamando-o para que descesse,
mas não conseguia parar de subir, disse a chorar

só um bocadinho, e eu mesmo entrei
duas ou três vezes no sonho, imaginando a corda

atada à sua cintura, corda pela qual o Don estaria amarrado
a este mundo, agarrando-a enquanto ela chicoteava desenrolando-se

na relva a meus pés, e segurando-a
com toda a minha força até quase me puxar para cima

e me tirar a pele dos palmos,
torcendo-se lentamente no céu,
pelo que me tornei como as árvores aqui na terra gritando

volta a descer, volta a descer,
correndo alguns quarteirões e olhando para o céu,

primeiro na Rua n.º 4, mas enquanto o vento o atirava para aqui e para ali
também eu percorria abruptamente os pátios, pulando uma ou outra cerca,

não querendo desviar os olhos dele,
não querendo perdê-lo, enquanto ele navegava

por dentro e para fora das nuvens baixas, olhando para baixo
com os seus olhos tristes como quando

me disse naquele dia ao pequeno-almoço sou um sobrevivente, eu sobrevivi,
este homem preto e gay de 53 anos,

pelo que fizemos uma pequena dança
contando as inúmeras balas a que ele tinha escapado,

girando os biscoitos no xarope oleoso,
o Don ocasionalmente espetando o garfo no ar enfaticamente,

sorrindo e dando goles no café e
abanando as nossas cabeças como se não pudéssemos acreditar,

e tendo sobrevivido, o Don queria uma criança para amar,
e fizemos planos de que talvez eu pudesse fazer o bebé

com o meu amor e que ele poderia ser o verdadeiro pai, lendo
e cozinhando e preocupando-se, enquanto eu me entreteria no jardim

e a minha querida faria a massa,
o que talvez pudesse até ter vindo a funcionar,

apesar de o Don nunca antes ter lavado um prato, e quando um dia lhe 
disse para pôr o raio do prato no lava-loiça se contorceu

no seu lugar e me chamou cabrão antes de o mergulhar na água,
voltando à sua música das Destiny's Child sobre sobrevivência,

enquanto despedaçava e tragava o resto da massa com esta mesma
colher que tenho agora nas mãos, para a qual olho, deixando tudo isto para trás.

Jurei que quando chegasse o momento de escrever este poema iria transformar
esta tristeza em alguma espécie de mel com pequenas canções 

que por vezes consigo criar a partir destes artefactos escrevinhados
da nossa desolação. Não consigo sequer elaborar uma metáfora

do meu reflexo ao contrário e pouco visível
na colher. Como apenas desejava que algo fizesse sentido,

para o que me respondo oh, recompõe-te.
Não é essa a questão.

Depois de o Don ter sido assassinado sonhei com ele,
abraçando-o e dizendo-lhe tens de partir agora,

compondo o seu cachecol e aconchegando-o no seu sobretudo de lã,
chorando e puxando para baixo o seu chapéu russo de pêlos

para lhe proteger as orelhas, beijando os seus olhos e as suas bochechas
uma e outra vez, tens de partir agora,

apertando o seu casaco pelas lapelas,
o Don de olhar perscrutante, com os seus olhos tristes,

Olhando através de mim, ou para mim,
do modo como este meu morto às vezes faz,

olhando directamente para dentro das casas dos outros,
que com sorte têm flores

em vasos sobre grandes mesas de madeira,
e uma ou duas cadeiras confortáveis,

e grandes janelas através das quais a luz
verte e purifica e dá um aspecto menos terrível

ao que de outro modo doeria para sempre.


Resultado de imagem para catalog of unabashed beauty

Spoon
              for Don Belton
Who sits like this on the kitchen floor
at two in the morning turning over and over
the small silent body in his hands
with his eyes closed fingering the ornate
tendrils of ivy cast delicately into the spoon
that came home with me eight months ago
from a potluck next door during which
the birthday boy so lush on smoke
and drink and cake made like a baby
and slept on the floor with his thumb
in his mouth until he stumbled through my garden
to my house the next morning where I was frying up
stove top sweet potato biscuits, and making
himself at home as was his way,
after sampling one of my bricks
told me I could add some baking powder
to his and could I put on some coffee
and turn up the Nina Simone and rub, maybe,
his feet, which I did, the baking powder,
stirring it in, and I like to think,
unlikely though it is, those were the finest
biscuits Don ever ate, for there was organic coconut oil
and syrup bought from a hollering man
at the market who wears a rainbow cap
and dances to disguise his sorrow,
and it might be a ridiculous wish,
but the sweet potatoes came from a colony
just beyond my back door, smothering
with their vines the grass and doing their part
to make my yard look ragged and wild
to untrained eyes, the kale and chard so rampant
some stalks unbeknownst drooped into the straw mulch
and the cherry tomatoes shone like ornaments
on a drunken Christmas tree and the blackberry vines
gnawed through their rusty half-ass trellis,
this in Indiana where I am really not from, where,
for years, Negroes weren’t even allowed entry,
and where the rest stop graffiti might confirm
the endurance of such sentiments, and when
I worried about this to Don on a cool September evening,
worried it might look…
Don in his kindness abundant and floral, knowing my anxiety
before I stated it, having been around,
having gone antiquing in Martinsville a few weeks back
and been addressed most unkindly by a passing truck
or two, trucks likely adorned with the stars and bars,
knowing the typhoons race makes our minds do,
twirling with one hand a dreadlock and patting my back with the other
asked, smiling sadly and knowingly, niggerish?
before saying, it looks beautiful, and returning to some rumination
on the garden boy of his dreams,
whose shorts were very short, and stomach taut
and oily enough to see his reflection in.
Don told me this as we walked arm in arm
through our small neighborhood,
which he asked me if he could do,
is this ok, he asked, knowing mostly
how dense and sharp the dumb fear
of mostly straight boys can be—oh Don—
walking arm in arm, shoulder to shoulder,
his hand almost patting my forearm, resting there,
down the small alley next to the graveyard,
fall beginning to shudder into the leaves,
and Don once dreamt he was in that graveyard
next to his house on 4th, where in real life
we sang Diana Ross’s Missing You while decorating
his kitchen, where I once I asked to borrow
a signed Jamaica Kincaid novel at which
Don made one sound by sucking his teeth that indicated
I was both impossibly stupid and a little bit cute
and in the dream in the graveyard
where century-old oak trees look like giants trudging
into a stiff wind, and some gravestones are old
enough to be illegible and lean back as though
consulting the sun, Don dreamt he was floating
into the air which, pleasant at first,
became terrifying, he told me, beginning to cry,
just a little, as the world beneath him
grew smaller and smaller, his house
becoming a toy, the trees’ huge limbs like the arms,
now, of small people, calling him down,
but he couldn’t stop going higher, he said, crying,
just a little, and I have inserted myself
two or three times into the dream, imagining a rope
cinched to his waist by which Don might be tethered
to this world, snatching it as it whips uncoiling
through the grass at my feet, and gripping it
with all my strength until it almost hauls me up
and takes the skin of my palms with it, twisting slowly into the sky
at which I become like the trees here on earth shouting
Come back, come back
running some blocks looking into the sky,
first down 4th, but as the wind sends him this way and that
I too veer through backyards, hopping a fence or two,
not wanting to take my eyes from him,
not wanting to lose him, as he sails
in and out of the low clouds, looking down
with his sad eyes, just as he did
when he said at breakfast I’m a survivor, I survived,
this 53 year-old gay black man,
to which we did a little dance
listing the myriad bullets he’d dodged,
swirling the biscuits in their oily syrup,
Don occasionally poking his fork into the air for emphasis,
laughing and sipping coffee and
shaking our heads like we couldn’t believe it,
and having survived Don wanted a child to love,
and we made plans that I might make the baby
with my sweetie and he could be the real dad, reading
and cooking and worrying, while I played in the garden
and my sweetheart made the dough,
which maybe would have worked,
though Don never once cleaned a dish, and when I told him
to put his goddamned plate in the sink, he writhed
in his seat and called me bitch before plopping it in,
returning to his Destiny’s Child tune about survival,
while he scooped and slurped the remaining batter
with this spoon in my hands, into which I stare, seeing none of this.
I swore when I got into this poem I would convert
this sorrow into some kind of honey with the little musics
I can sometimes make with these scribbled artifacts
of our desolation.  I can’t even make a metaphor
of my reflection upside down and barely visible
in the spoon.  I wish one single thing made sense.
To which I say: Oh get over yourself.
That’s not the point.
After Don was killed I dreamt of him,
hugging him and saying you have to go now,
fixing his scarf and pulling his wool overcoat snug,
weeping and tugging down his furry Russian cap
to protect his ears, kissing his eyes and cheeks
again and again, you have to go,
cinching his coat tight by the lapels,
for which Don peered at me again with those sad eyes,
or through me, or into me,
the way my dead do sometimes,
looking straight into their homes,
which hopefully have flowers
in a vase on a big wooden table,
and a comfortable chair or two,
and huge windows through which light
pours to wash clean and make a touch less awful
what forever otherwise will hurt.






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